sábado, 19 de março de 2016

Verborragia

Octávio Gramanazi mostrou que tinha talento desde criança. A primeira palavra que proferiu não fora "papai", nem "mamãe", longe disso. Octávio disse, com clareza, "circunspecto". Lembro-me bem. Sua mãe, Evanila Bechará entrou na sala, olhou para o marido e disse: 

- Você está estranho. Está meio...

- Circunspecto! - Completou Octávio no alto de seus recém completos dois anos de idade. 

Daí em diante, desandou erudição. Enquanto os colegas de aula liam gibis, Octávio lia Dostoiévski. Lia no original, é claro. 

Aos vinte anos formou-se em Letras, aos trinta já tinha lançado duas gramáticas e um dicionário. Aos trinta e cinco casou. Aos trinta e seis separou-se, não suportava uma esposa que não conjugava os verbos de maneira correcta.  Aos quarenta, vivia isolado em seu apartamento, cercado por livros e longe de qualquer tipo de falante inculto. 

Assistindo a um documentário sobre a importância das línguas clássicas para a sociedade contemporânea, Octávio sentiu um fisgada no braço. Bateu com força no local picado. A bofetada doeu mais do que o pequeno incômodo anterior. Olhou para o braço. Lá estava!

Pequeno e morto, mas ainda assim aterrorizante. O pequeno mosquito listrado, transmissor de tantas mazelas, talvez o inseto mais famoso do século, causava inveja na pobre e sempre adorada joaninha. 
Octávio pegou o cadáver do pequeno com cuidado e foi até a porta da vizinha, precisava tirar a teima, tocou a campainha. 

- Olá, seu Octávio. Tudo bem com tu?

- O correto seria "contigo", mas agora não importa. A senhora pode dizer-me se este mosquito parece-lhe familiar? - Perguntou mostrando o bicho para a pobre Dona Olga. 

- Eu já vi isso! É aquele da TV! Aécio, né? Aécio Egípcio? 

- Aedes, Dona Olga. Aedes! 

- Isso! Me confundi! A mídia confunde tudo! Tem que ir ao médico. Me preocupo com o senhor, seu Octávio.

- O correto seria "preocupo-me", pois o pronome oblíquo jamais deve... Bem, não importa agora! - Disse, dando-se conta de sua chatice. - Olha, vou esperar uns dias. Pode ser que ele não estivesse contaminado com nada.

- Dizem que esse bicho tá passando até câncer e sífilis... 

- Avisar-te-ei de qualquer percalço, Dona Olga. 

O dia seguiu sem maiores problemas e nenhum sintoma apareceu. Tive sorte, pensou Octávio, sem saber o que estava por vir. 
Foi na manhã seguinte, na padaria, que aconteceu. Quando chegou a vez de Octávio Gramanazi fazer o pedido ao balconista, ele enunciou: 

- Quero sete pões... 

Chegou a tremer-se de pavor. "PÕES"?! Desde quando falava isso?! Tentou novamente:

- Quero sete põ... põ... PÕES! - Gritou. 

A balconista, acostumada com o impressionante léxico do cliente, riu de nervosa. 

- Não ria! Eu não sabo o que... SABO? Eu não... não.... sabo! - Definitivamente, Octávio não conseguia falar corretamente.

Saiu na rua desesperado e, na esquina de casa, encontrou um velho amigo.

- Olá, Octávio! Quanto tempo! O que tens feito? Alguma novidade?

- Olha, Rodrigo, fura picado por mosquito listandito... Quer dizer, eu não sabo muito o que...

- Está tudo bem, Octávio?

- Bein, beins... Drogue! Eu naum façu a nemor ideia do que... A questã é berturbatora e mim sinto perplecto! 

 Saiu correndo, trancou-se no apartamento e dizem que todos ouviam seus gritos de desespero. Tentava falar muitas palavras. Gritava na janela:

- Tauba! Rezistro! Adevocado! Largarto! Cardasso! Amarrom! Iorgurte! Mortandela! Mindingo! IMBIGO! 

Pobre homem. Nunca descobriu-se a cura de sua doença. Nenhum outro caso foi registrado no mundo.

Octávio não podia mais dar aula, foi morar na rua. Pedia "insmola", "trucadinho", "monhedas".  Eu nunca mais o tinha visto, até semana passada. Vi Octávio na televisão, cercado de admiradores, lançava um livro: Manual Agramatical. Tinha entendido, finalmente, o valor de falar a língua do povo, a língua do mundo, que não podia ser aprisionada em tabelas, nem representada por regras. Estava feliz, muito feliz.










sábado, 27 de fevereiro de 2016

Reforma Infernal

       Foi Lúcifer quem primeiro falou, diante do silêncio ensurdecedor.

- Esperava que alguém fosse tomar a iniciativa, mas perece que estava enganado...

- Olha, meu anjo, normalmente é o mais velho quem começa o falatório. Eu sempre fico esperando Anúbis falar, mas essa cadela fica fazendo a egípcia, faz de conta de que nunca é com ela! - Disse Hades, louco por um barraco. 

- Ai, miga, sua louca, você adora uma confusão, né?! - Riu, no fundo da mesa, Plutão.

- Que mania de roubar minhas gírias! Credo! Meu Diabo do Inferno, te liga, planetinha! Nem planeta mais tu é! Deveria ficar quieto em todas as reuniões e ser grato a mim para toda a eternidade, porque, se não fosse pela minha existência, os Romanos nem teriam criado você ao roubar a religião politeísta dos Greg..

- Chega! Gente, vocês são chatos. Que inferno! - Gritou Kali, entrando no salão e fechando a porta com um de seus quatro braços.

- É o inferno mesmo, "monamu"! Só a hindu frenética dos incensos que não se localizou...

- Hades, por favor, cala a boca. - Pediu Exu, que só observava com olhar de desprezo.


      Já era a terceira reunião naquele ano. Ninguém mais suportava. Estavam no salão principal do Submundo. Quando a coisa ficava feia, mas bem feia mesmo, num nível, digamos, infernal, os deuses da reuniam-se. Estavam todos lá, centenas, um de cada religião: Lúcifer, do Cristianismo; Anúbis, dos Egípcios; Kali, do Hinduísmo; Exu, das religiões da fascinante África; Hades, dos Gregos; Plutão, dos Romanos pré-cristãos; e muitos outros. Apesar da enorme quantidade de divindades, eram esses deuses que mais tomavam a palavra e as decisões. Perséfone, mulher de Hades, chegou por último e sentou longe do marido que, por sua vez, insistiu:

- Amorzinho, senta aqui com teu diabão...

- Cala a boca, Hades. - Respondeu ela, ríspida.

- É, grego, fica quieto. Todo mundo sabe que tu prefere o Hérc...

- E vamos dar início a reunião! - Interrompeu Kali.

- Bem, estamos aqui hoje porque a situação está caótica. O inferno nunca esteve tão infernal! Pior do que isso, só a Terra. Bem, estamos com pouco espaço e tem muita gente vindo aí!

- Mais gente?! Que horror! - Gritou algum deus que comia todos os salgadinhos da mesa.

- É, mais gente! Tem neonazis, bolsominions, uma galera! Estão vindo e ficarão pra sempre. Chego a pensar em adotarmos os sistema de reencarnação...

- Ah, não! Eu não mando Hitler de novo pra Terra, que homenzinho mais sem classe! - Proferiu Plutão.

- Temos que fazer reformas! Estamos com a mesma estrutura que Dante Alighieri criou, não dá mais. Chega! As pessoas já chegam aqui sabendo as torturas que vão receber. Alguém tem alguma ideia? - Lúcifer, assim, passou a palavra para os outros.

- Que milagre! Falou pouco hoje, Satã, Capetinha, Diabinho, Serpentinha...

- Hades, se não vai ajudar, não atrapalha. - Pediu Exu.

- Tá, parei, mas tenho ideias! Pensei em castigos novos! Podemos colocar um ônibus lotado, mas muito lotado, daqueles articulados, sabem? Podemos colocar a passagem a 3,75 e fazer um feitiço, de modo que, quando a pessoa chegue no final do ônibus, depois de ser espremida o caminho todo, ela simplesmente volta ao início! PARA SEMPRE!

- Boa, boa! - Disseram todos e todas.

- Também pensei em trazer aquela cantora, a Cláudia Leite, sabem? Colocar ela cantando aqui, pra sempre também. É só dar umas chocolates que ela...

- Ah, não! Eu não quero aquela menina aqui! Tudo tem limite! - Disse o deus que, após comer os salgadinhos, atacava os brigadeiros.

- Você não tem que opinar, tua religião sequer existe e...

- Olha quem falando! O filho de Cronos menos poderoso que...

- Gente, vamos tentar...

- Tentar o cacete, seu bosta! Eu agora vou falar tudo o que eu...

     Em questão de segundos, todos os deuses estavam brigando. A discussão durou alguns séculos e, após a reunião, nada ficou resolvido. O inferno continuava infernal, até parecia a Terra.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Aedesempregado

Ele entrou cabisbaixo. Vestia a mesma roupa listrada de sempre.

-Tudo bem?
- Mais ou menos. O emprego tá foda, sabe?
- Pouco movimento?
- É, as pessoas meio que já tão cansadas, sabe? E tem a crise, sabe?
- As pessoas estão atentas?
- Muito!
- E o que eu posso fazer por você?
- Então, com o movimento caído desse jeito e com a criançada lá em casa, sabe?
- Aedes, eu já entendi: você quer outro emprego!
- Isso!
- Mas você é um ícone! É o famoso Aedes Aegypti! Você tocou o terror por anos e...
- Chega de viver de passado! Quero voltar aos tempos gloriosos! Queria transmitir raiva, câncer...
- Impossível! Impossível!
- Ah, vê o que você pode fazer por mim, por favor!
- Tá, vou ver o que tem aqui.
- Obrigado, porque é muito ruim, sabe?
- Achei! Tem aqui, olha! Febre Chikungunya e um produto novo no mercado, tá valendo?
- Qual o nome?
- Zika Vírus! O Governo que fez! Erro de laboratório e o caramba!
- Ah, que nome mais idiota!
- Mas tem comissão! Você passa a carregar as três doenças e, para cada 30 picadas, você transmite uma microcefalia!
- Boa! Começo quando?
- Agora!
- Fechado!
- Fechado!

E saiu voando, pronto para tocar o terror novamente. Em meio à crise, Aedes agora tinha três empregos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Por antecipação


Segurando a mochila da moça que estava em pé ao seu lado no ônibus, Jussara conversava animada com a melhor amiga do dia, Tânia. Havia conhecido Tânia ao passar pela roleta, mas já a considerava uma grande amiga. 

- Canseira, mulher! Credo. Esse ônibus sempre lotado, sempre! Se não fosse o aniversário da minha filha, eu não saía de casa, não...

- Aniversário da mais velha?

- Não. Da pequena.

- Quantos anos?

- Treze.

- Ah, então já não quer mais brinquedo. Já tá grandinha.

- Pior. A guria quer um celular. Comprei, né? Vou fazer o quê? É o futuro...

- Comprou um desses modernos?

- Ah, todos são modernos pra mim. Tal o tal de Detroid...

- Android.

- Isso!

- Ela vai adorar os aplicativos. Tem muitos!

- Tenho medo...

- Tem que ter mesmo. Tem muito tarado por aí.

- Credo, amiga! Não fala isso!

- É sério, Jacira!

- Jussara.

- Isso! E vai ter um monte de maloqueiros dando em cima dela. Te liga!

- Ai, já fico nervosa! Para! 

- Depois tua guria se envolve com um traficante aí, engravida e já viu, né?

- Deus me livre!

- E o pior: capaz de ela ficar viciada que nem o marido! Ele vai bater nela, certamente! Ela vai acabar se prostituindo pra sustentar a criança, que pode nascer com sequela. Olha, se não nascer com sequela, vai seguir os passos do pai bandido: estuprar, matar, assaltar e o caramba! Vai acabar na cadeia o coitadinho. 

Jussara desceu na parada seguinte, chorando. Mal pode despedir-se da amiga que a alertou dos perigos do mundo. Assim que chegou em casa, Jussara tomou toda a cartela de comprimidos que a gaveta guardava. Deu fim à vida, pois já não suportava o peso de ter um neto na cadeia. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Dá um daço?

Comida é item sagrado. Ponto. Não tem discussão.
Só Jesus para dividir um mísero pão com doze caras. Só por esse ato, por mim, já é possível considerá-lo um deus. Mas, convenhamos, quem consegue transformar água em vinho não tem porquê se preocupar com pão.
O fato é que, desde os primórdios da humanidade, existe em alguns seres humanos um distúrbio intrigante. Não há nome para tamanha mazela até os dias contemporâneos, mas existem algumas hipóteses para esse eterno anonimato. Vejamos: 

1) é praticamente impossível, a olho nu, diagnosticar o tenebroso problema; 
2) existe a possibilidade, segundo teóricos dos Antigos Astronautas (vide: Alienígenas do Passado, em History Channel), de que o distúrbio seja oriundo de genes extraterrestres, que se camuflam com maestria suficiente para se tornarem invisíveis pelo tempo que necessário for. 

Enquanto não evoluímos o suficiente para detectar o transtorno em tempo de cortar o mal pela raiz, devemos seguir a receita de sempre: pura observação. Você já sabe do que eu estou falando, não é?
Com toda certeza, você já passou por isso, a menos que faça parte do time adversário. Visualize a cena: lá está você, com uns sete anos mais ou menos, na primeira série; em suas mãos: um pacote de bolacha recheada. A hora do intervalo chega e, com fome, você o abre. Em questão de segundos eles se manisfestam! Os terríveis pedintes de lanche surgem de todos os cantos. 
O que eles querem? Sua comida! Desde um pequeno biscoito até um enorme pedaço do seu pastel (provavelmente o mais recheado e saboroso também), não importa. Eles não querem saber se você não almoçou, se aquele é o seu prato favorito ou se existe mais comida de onde você tirou a sua. Não, não e não. Nada importa! A razão de suas vidas é um eterno infernizar, destruir com o prazer inigualável de degustar, a sós, o lanche que é só seu, só. 
E o pior: compartilhamos! Às vezes por piedade, às vezes com medo de ir para o inferno, quase sempre no automático, sem pensar no que estamos fazendo, apenas realizando aquele ato, enfeitiçados pelo olhar faminto do pedinte a nossa frente. 
Os principais tabloides do mundo informam: há quem morra por dividir comida; divide tanto que fica sem; ou pior, divide tanto que precisa pedir para quem levou toda a sua. Pode-se tornar-se um deles. Imagine? Credo! 
Egoísmo? Não. Bom senso, apenas. Não peço para não ter que oferecer e...

Só um momento. Aguarda um pouco aí. Já vou terminar de escrever...
É que tem uma pessoa aqui ao lado que está puxando papo e me desconcertando...
Espera, o que é isso na sacola dela? Empada?!

"EI, ME DÁ UM PEDAÇO?!"



domingo, 4 de outubro de 2015

Divino ENEM

        Fulana estava cansada de tanta pressão. Maldito vestibular! Maldito ENEM! Não aguentava mais. Para piorar, tinha que lidar com as falsianes do cotidiano e com os comentários do tipo “Eu conto contigo!”, “Sei que você consegue!”, “Você vai ir bem, afinal você só estuda, né?”.  
         Aflita, exaurida, desnorteada. Nenhuma palavra expressava o que ela sentia: medo, cansaço, dor, raiva. Havia, ainda por cima, aquelas pessoas que nada diziam, mas sorriam e olhavam para ela com uma esperança sem fim. Credo, aquele olhar era pior do que qualquer frase de apoio pronunciada em voz alta.
           Foi num momento de desespero (após perceber que havia errado todas as questões de literatura do simulado) que aconteceu o pior: Fulana jogou-se do último andar do prédio onde morava. Ao passar, em queda, pela janela de seu quarto, conseguiu ver o vulto vermelho em cima da cama. Era a capa da apostila do cursinho! Deus, esse seria seu último pensamento?! A droga do vestibular?! Sim, seria. Foi.
(...)
           Abriu os olhos. Estava numa sala clara, sentada na ponta de uma longa mesa. Do outro lado, na outra extremidade da mesa, estava uma sorridente menina. Parecia ter quase a mesma idade de Fulana, uns 19 anos, e segurava uma prancheta. Sobre sua cabeça, flutuava uma auréola lilás brilhante.

- Teu nome? – Perguntou, sorridente, a anjinha.

- Fulana.

- Ah, sim! É o que está aqui! Achei que fosse alguma piada do estagiário. Por que diabos tu te chama fulana? – Perguntou isso hesitando ao falar “diabos”.

- Meus pais estavam em dúvida entre muitos nomes, resolveram colocar um genérico. Estou no céu?

- Não, mas esse é o caminho! Só preciso de uns dados teus e já te entrego as apostilas.

- Como assim? O que está acontecendo?

- Ora, tu te matou, não? É por isso que tu tá aqui!

- Sim, eu...

- Então, quem se mata não entra no céu direto, não. Tem que fazer o Exame Universal de Oriundos de Suicídio, o EUOS. São dois dias de prova, no primeiro dia cai o Velho Testamento, no segundo cai o Novo Testamento mais uma redação sobre algum tema da Idade Média, que era a nossa idade de ouro. Saudades, inclusive!

- Eu não estou acreditando nisso! Tem ENEM depois da morte?!

- SHHHHIIIIIUUUU! Não fala essa palavra! Essa provinha da Terra é coisa do Caipiroto, mas o pessoal aqui curtiu a ideia e resolveu adaptar.

- Isso é plágio! É um absurdo! Eu me matei para não fazer nenhuma prova e agora...  Quero falar com Deus!

-  Ah, também queria, juro! Só conheço Ele de vista, mas parece ser um cara legal.

- Dois dias de prova? – Lamentou, ignorando a resposta da anja.  – Eu terei que fazer prova durante dois dias, mesmo depois da morte?!

- Isso! Ah, nem é tanto, para de frescura! Dizem que o Chefe fez o mundo em sete! Dois dias de prova é tranquilo. Pensa, só tem uma leitura obrigatória...

- Ah, sim! Só a Bíblia inteira! Tem prova no Céu! Isso é um inferno!

- Shhhhhiiiiuuuuuu! Não fala essa palavra! E não, não é um inferno. Para entrar no Inferno é só fazer um desenho livre, nem precisa colocar chão! Tu acredita?! Tem lugares e lugares, né... E sim, tem prova! Assim na Terra como no Céu...

- Quando é a prova? Como funciona isso? – Perguntou, já chorando, Fulana.

- Ah, fica tranquila, é daqui a um ano só! Vai ter cursinho preparatório. Esse ano São José vai dar aula! Dizem que vai ser divertidíssimo!

- Eu quero morrer...

- Já está morta, criatura! Antes do tempo, aliás. Estuda bastante e te prepara, de verdade. Têm bastantes oportunidades, sabe?

- Quantos alunos, digo, suicidas têm por vaga?

- Ah, nem sei ainda, porque não saiu o edital. Ano passado eram trinta e cinco mil por vaga. Então...

- Trinta e cinco mil? Tem tantos suicidas assim na Terra?

- Ah, não! De forma alguma! É somando os planetas todos...

- Planetas? Tem outros planetas?

- Sim! Vocês estavam perto de descobrir, mas tu te matou antes, criatura! Sem mais delongas, vamos aos dados...
     
          Fulana informou tudo com uma tristeza profunda. Se arrependimento matasse... não teria acontecido nada, pois ela já estava morta.
         Não adiantou lamentar. Pegou as apostilas e fez o cursinho preparatório, depois a prova. Tentou uma, duas, quatro, sessenta vezes, mas não conseguiu passar. Os suicidas do Planeta Otrec eram sempre os melhores, fato!
        Fulana já estava ouvindo piadas dos anjos e vendo olhares debochados dos arcanjos quando ganhou uma bolsa num setor menos importante do Céu. Entrou, não gostou do lugar. Voltou pra Terra, nasceu em São Paulo decidida: dessa vez eu passo na federal! Passou.



domingo, 9 de agosto de 2015

A cidade que não tinha Aurélio

        Santa Agnosia do Sul era uma cidade interiorana pacata. Eu sei, é isso o que dizem sobre a maioria das cidades interioranas, certo? Mas, de fato, era verdade.
            Era raro que houvesse algum crime, acidente de carro, etc. Quando algo desse tipo acontecia, a cidade inteira (três mil habitantes) ficava sabendo. Todos saíam às ruas, com seus rostos de expressão curiosa e, de certa forma, contente por algo ter acontecido por aquelas bandas que, geralmente, eram entediantes.
            Todos os moradores de Santa Agnosia do Sul lembravam-se do dia em que Seu Jean roubou um pão para saciar sua fome. Um escândalo! Um ladrão! Quem diria que Seu Jean seria capaz de roubar! Foi expulso da cidade imediatamente. Sim, expulso.
        Sta. Agnosia do Sul é uma daquelas cidades que tem sua própria lei. Quase que um "coronelismo moderno", sim.
             O fato é que Seu Jean alegou estar interpretando um personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo; contudo, ninguém sabia quem era Victor Hugo e, se havia roubado, miserável era o próprio Seu Jean. Foi expulso de qualquer maneira.
            Não sei, caro(a) leitor(a), se você percebeu, mas eu disse que a cidade era pacata. No passado. Isso mudou com a chegada de Seu Osvaldo.
            Foi durante a tarde de um domingo que o carro parou fronte a antiga casa de Seu Jean. Era Osvaldo, o mais novo morador da cidade. 
            Havia comprado algumas terras e parecia querer plantar milho, ninguém sabia ao certo. Ao longo de toda a semana, muitos vizinhos foram visitar e se apresentar para Osvaldo. Parecia um homem bom, digno, honesto. Só parecia.  
           Dona Osmarina fez sua famosa feijoada e chamou a rua inteira para confraternizar em sua casa. Era dia de comemoração. Seu filho, Marcos, estava noivando. 
             Chamaram todos, inclusive Seu Osvaldo, que contou piadas, riu e conversou, mas não bebeu, nem comeu. Era de se estranhar, afinal, ninguém resistia à feijoada de Dona Osmarina. Em dado instante da noite, Osvaldo começou a ficar trêmulo, espumar pela boca e, sem se despedir de ninguém, irrompeu pela porta de frente e desapareceu na rua escura. 
          Ninguém viu Seu Osvaldo pelo resto do mês. Quando finalmente saiu da casa, estava pálido, esquálido, lânguido. Caminhou pela cidade, cumprimentando a todos, que o miravam-no com medo, desviando de seu olhar. 
          Já estava marcado: Osvaldo deveria ser evitado.  
         O pobre homem almoçou na quitanda de Seu Jerônimo, onde sentou-se só, mas logo recebeu a companhia da própria Dona Osmarina, que já chegou indagando o porquê dos estranhos modos do mais recente morador de Santa Agnosia do Sul.
          Após algumas garrafas de cerveja e respostas sem sentido, Osvaldo confessou, em voz baixa e com lágrimas nos olhos, que era um pagófago. Implorou a Dona Osmarina para que ela não dissesse a ninguém, mas o pedido não surtiu efeito.  Ao final do mesmo dia, a cidade inteira sabia que Seu Osvaldo era um pagófago.   

"Tu não vais acreditar! Sabe o Osvaldo? É pagófago! Disse-me isso ontem na cara dura!", dizia Osmarina a todos com quem encontrava.   

"O que é um pagófago?!", perguntavam alguns.  

"Ah, coisa boa não é! Ele me disse isso cho-ran-do!", concluía Osmarina.   

      As atitudes de Seu Osvaldo tornaram-se mais estranhas. Todos odiavam-no. Lançavam pedras e ovos em sua casa. Havia pichações por toda a rua, diziam: "FORA PAGÓFAGO!", "Pagófago bom é pagófago morto!", "Queime no inferno, pagófago!". 
     O povo fazia protestos em frente à casa, pediam que Osvaldo deixasse a cidade. Os jornais estampavam relatos de moradores que afirmavam terem sido atacados pelo maldito pagófago. Os relatos eram terrivelmente assustadores.
       O pobre Osvaldo apenas aparecia à janela, em prantos. Cada vez mais debilitado. Certa vez pediu compreensão, mas foi abafado pelos gritos da multidão enfurecida. 
      Osvaldo não compreendia tanta ódio, tanta intolerância. Ele precisava de ajuda, de amigos.       Marcos, filho de Osmarina, estava cansado de ver sua mãe sofrendo, de viver a insegurança que havia na cidade, oriunda da presença de um pagófago. Não pensou duas vezes. No meio da madrugada, ateou fogo à casa do monstro. 
       Quando o sol surgiu no horizonte, a cidade reuniu-se em frente aos restos da casa de Osvaldo. O corpo carbonizado estava agarrado ao que havia restado da geladeira. A cidade não comentou nada.   Limpou-se a bagunça, apagaram-se as pichações e o caso foi abafado. Tudo estava bem, mas o trauma ficaria para sempre.  
      Marcos teve a ideia de elaborar um clube especializado em identificar pagófagos, visava à proteção da cidade. Antes de fundar o grupo, no entando, decidiu saber de uma vez por todas o que significava “pagófago”. Assim que descobriu, desistiu da ideia de criar a equipe e saiu da cidade apressado. Abandonou tudo e nunca mais fora visto.     

Vocabulário  
Agnosia = capacidade intelectual limitada; burrice.  
Pagofagia = distúrbio alimentar que faz com que o indivíduo tenha compulsão por comer gelo. Pode causar anemia, fraqueza, emagrecimento descomunal.