sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Dá um daço?

Comida é item sagrado. Ponto. Não tem discussão.
Só Jesus para dividir um mísero pão com doze caras. Só por esse ato, por mim, já é possível considerá-lo um deus. Mas, convenhamos, quem consegue transformar água em vinho não tem porquê se preocupar com pão.
O fato é que, desde os primórdios da humanidade, existe em alguns seres humanos um distúrbio intrigante. Não há nome para tamanha mazela até os dias contemporâneos, mas existem algumas hipóteses para esse eterno anonimato. Vejamos: 

1) é praticamente impossível, a olho nu, diagnosticar o tenebroso problema; 
2) existe a possibilidade, segundo teóricos dos Antigos Astronautas (vide: Alienígenas do Passado, em History Channel), de que o distúrbio seja oriundo de genes extraterrestres, que se camuflam com maestria suficiente para se tornarem invisíveis pelo tempo que necessário for. 

Enquanto não evoluímos o suficiente para detectar o transtorno em tempo de cortar o mal pela raiz, devemos seguir a receita de sempre: pura observação. Você já sabe do que eu estou falando, não é?
Com toda certeza, você já passou por isso, a menos que faça parte do time adversário. Visualize a cena: lá está você, com uns sete anos mais ou menos, na primeira série; em suas mãos: um pacote de bolacha recheada. A hora do intervalo chega e, com fome, você o abre. Em questão de segundos eles se manisfestam! Os terríveis pedintes de lanche surgem de todos os cantos. 
O que eles querem? Sua comida! Desde um pequeno biscoito até um enorme pedaço do seu pastel (provavelmente o mais recheado e saboroso também), não importa. Eles não querem saber se você não almoçou, se aquele é o seu prato favorito ou se existe mais comida de onde você tirou a sua. Não, não e não. Nada importa! A razão de suas vidas é um eterno infernizar, destruir com o prazer inigualável de degustar, a sós, o lanche que é só seu, só. 
E o pior: compartilhamos! Às vezes por piedade, às vezes com medo de ir para o inferno, quase sempre no automático, sem pensar no que estamos fazendo, apenas realizando aquele ato, enfeitiçados pelo olhar faminto do pedinte a nossa frente. 
Os principais tabloides do mundo informam: há quem morra por dividir comida; divide tanto que fica sem; ou pior, divide tanto que precisa pedir para quem levou toda a sua. Pode-se tornar-se um deles. Imagine? Credo! 
Egoísmo? Não. Bom senso, apenas. Não peço para não ter que oferecer e...

Só um momento. Aguarda um pouco aí. Já vou terminar de escrever...
É que tem uma pessoa aqui ao lado que está puxando papo e me desconcertando...
Espera, o que é isso na sacola dela? Empada?!

"EI, ME DÁ UM PEDAÇO?!"



domingo, 4 de outubro de 2015

Divino ENEM

        Fulana estava cansada de tanta pressão. Maldito vestibular! Maldito ENEM! Não aguentava mais. Para piorar, tinha que lidar com as falsianes do cotidiano e com os comentários do tipo “Eu conto contigo!”, “Sei que você consegue!”, “Você vai ir bem, afinal você só estuda, né?”.  
         Aflita, exaurida, desnorteada. Nenhuma palavra expressava o que ela sentia: medo, cansaço, dor, raiva. Havia, ainda por cima, aquelas pessoas que nada diziam, mas sorriam e olhavam para ela com uma esperança sem fim. Credo, aquele olhar era pior do que qualquer frase de apoio pronunciada em voz alta.
           Foi num momento de desespero (após perceber que havia errado todas as questões de literatura do simulado) que aconteceu o pior: Fulana jogou-se do último andar do prédio onde morava. Ao passar, em queda, pela janela de seu quarto, conseguiu ver o vulto vermelho em cima da cama. Era a capa da apostila do cursinho! Deus, esse seria seu último pensamento?! A droga do vestibular?! Sim, seria. Foi.
(...)
           Abriu os olhos. Estava numa sala clara, sentada na ponta de uma longa mesa. Do outro lado, na outra extremidade da mesa, estava uma sorridente menina. Parecia ter quase a mesma idade de Fulana, uns 19 anos, e segurava uma prancheta. Sobre sua cabeça, flutuava uma auréola lilás brilhante.

- Teu nome? – Perguntou, sorridente, a anjinha.

- Fulana.

- Ah, sim! É o que está aqui! Achei que fosse alguma piada do estagiário. Por que diabos tu te chama fulana? – Perguntou isso hesitando ao falar “diabos”.

- Meus pais estavam em dúvida entre muitos nomes, resolveram colocar um genérico. Estou no céu?

- Não, mas esse é o caminho! Só preciso de uns dados teus e já te entrego as apostilas.

- Como assim? O que está acontecendo?

- Ora, tu te matou, não? É por isso que tu tá aqui!

- Sim, eu...

- Então, quem se mata não entra no céu direto, não. Tem que fazer o Exame Universal de Oriundos de Suicídio, o EUOS. São dois dias de prova, no primeiro dia cai o Velho Testamento, no segundo cai o Novo Testamento mais uma redação sobre algum tema da Idade Média, que era a nossa idade de ouro. Saudades, inclusive!

- Eu não estou acreditando nisso! Tem ENEM depois da morte?!

- SHHHHIIIIIUUUU! Não fala essa palavra! Essa provinha da Terra é coisa do Caipiroto, mas o pessoal aqui curtiu a ideia e resolveu adaptar.

- Isso é plágio! É um absurdo! Eu me matei para não fazer nenhuma prova e agora...  Quero falar com Deus!

-  Ah, também queria, juro! Só conheço Ele de vista, mas parece ser um cara legal.

- Dois dias de prova? – Lamentou, ignorando a resposta da anja.  – Eu terei que fazer prova durante dois dias, mesmo depois da morte?!

- Isso! Ah, nem é tanto, para de frescura! Dizem que o Chefe fez o mundo em sete! Dois dias de prova é tranquilo. Pensa, só tem uma leitura obrigatória...

- Ah, sim! Só a Bíblia inteira! Tem prova no Céu! Isso é um inferno!

- Shhhhhiiiiuuuuuu! Não fala essa palavra! E não, não é um inferno. Para entrar no Inferno é só fazer um desenho livre, nem precisa colocar chão! Tu acredita?! Tem lugares e lugares, né... E sim, tem prova! Assim na Terra como no Céu...

- Quando é a prova? Como funciona isso? – Perguntou, já chorando, Fulana.

- Ah, fica tranquila, é daqui a um ano só! Vai ter cursinho preparatório. Esse ano São José vai dar aula! Dizem que vai ser divertidíssimo!

- Eu quero morrer...

- Já está morta, criatura! Antes do tempo, aliás. Estuda bastante e te prepara, de verdade. Têm bastantes oportunidades, sabe?

- Quantos alunos, digo, suicidas têm por vaga?

- Ah, nem sei ainda, porque não saiu o edital. Ano passado eram trinta e cinco mil por vaga. Então...

- Trinta e cinco mil? Tem tantos suicidas assim na Terra?

- Ah, não! De forma alguma! É somando os planetas todos...

- Planetas? Tem outros planetas?

- Sim! Vocês estavam perto de descobrir, mas tu te matou antes, criatura! Sem mais delongas, vamos aos dados...
     
          Fulana informou tudo com uma tristeza profunda. Se arrependimento matasse... não teria acontecido nada, pois ela já estava morta.
         Não adiantou lamentar. Pegou as apostilas e fez o cursinho preparatório, depois a prova. Tentou uma, duas, quatro, sessenta vezes, mas não conseguiu passar. Os suicidas do Planeta Otrec eram sempre os melhores, fato!
        Fulana já estava ouvindo piadas dos anjos e vendo olhares debochados dos arcanjos quando ganhou uma bolsa num setor menos importante do Céu. Entrou, não gostou do lugar. Voltou pra Terra, nasceu em São Paulo decidida: dessa vez eu passo na federal! Passou.



domingo, 9 de agosto de 2015

A cidade que não tinha Aurélio

        Santa Agnosia do Sul era uma cidade interiorana pacata. Eu sei, é isso o que dizem sobre a maioria das cidades interioranas, certo? Mas, de fato, era verdade.
            Era raro que houvesse algum crime, acidente de carro, etc. Quando algo desse tipo acontecia, a cidade inteira (três mil habitantes) ficava sabendo. Todos saíam às ruas, com seus rostos de expressão curiosa e, de certa forma, contente por algo ter acontecido por aquelas bandas que, geralmente, eram entediantes.
            Todos os moradores de Santa Agnosia do Sul lembravam-se do dia em que Seu Jean roubou um pão para saciar sua fome. Um escândalo! Um ladrão! Quem diria que Seu Jean seria capaz de roubar! Foi expulso da cidade imediatamente. Sim, expulso.
        Sta. Agnosia do Sul é uma daquelas cidades que tem sua própria lei. Quase que um "coronelismo moderno", sim.
             O fato é que Seu Jean alegou estar interpretando um personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo; contudo, ninguém sabia quem era Victor Hugo e, se havia roubado, miserável era o próprio Seu Jean. Foi expulso de qualquer maneira.
            Não sei, caro(a) leitor(a), se você percebeu, mas eu disse que a cidade era pacata. No passado. Isso mudou com a chegada de Seu Osvaldo.
            Foi durante a tarde de um domingo que o carro parou fronte a antiga casa de Seu Jean. Era Osvaldo, o mais novo morador da cidade. 
            Havia comprado algumas terras e parecia querer plantar milho, ninguém sabia ao certo. Ao longo de toda a semana, muitos vizinhos foram visitar e se apresentar para Osvaldo. Parecia um homem bom, digno, honesto. Só parecia.  
           Dona Osmarina fez sua famosa feijoada e chamou a rua inteira para confraternizar em sua casa. Era dia de comemoração. Seu filho, Marcos, estava noivando. 
             Chamaram todos, inclusive Seu Osvaldo, que contou piadas, riu e conversou, mas não bebeu, nem comeu. Era de se estranhar, afinal, ninguém resistia à feijoada de Dona Osmarina. Em dado instante da noite, Osvaldo começou a ficar trêmulo, espumar pela boca e, sem se despedir de ninguém, irrompeu pela porta de frente e desapareceu na rua escura. 
          Ninguém viu Seu Osvaldo pelo resto do mês. Quando finalmente saiu da casa, estava pálido, esquálido, lânguido. Caminhou pela cidade, cumprimentando a todos, que o miravam-no com medo, desviando de seu olhar. 
          Já estava marcado: Osvaldo deveria ser evitado.  
         O pobre homem almoçou na quitanda de Seu Jerônimo, onde sentou-se só, mas logo recebeu a companhia da própria Dona Osmarina, que já chegou indagando o porquê dos estranhos modos do mais recente morador de Santa Agnosia do Sul.
          Após algumas garrafas de cerveja e respostas sem sentido, Osvaldo confessou, em voz baixa e com lágrimas nos olhos, que era um pagófago. Implorou a Dona Osmarina para que ela não dissesse a ninguém, mas o pedido não surtiu efeito.  Ao final do mesmo dia, a cidade inteira sabia que Seu Osvaldo era um pagófago.   

"Tu não vais acreditar! Sabe o Osvaldo? É pagófago! Disse-me isso ontem na cara dura!", dizia Osmarina a todos com quem encontrava.   

"O que é um pagófago?!", perguntavam alguns.  

"Ah, coisa boa não é! Ele me disse isso cho-ran-do!", concluía Osmarina.   

      As atitudes de Seu Osvaldo tornaram-se mais estranhas. Todos odiavam-no. Lançavam pedras e ovos em sua casa. Havia pichações por toda a rua, diziam: "FORA PAGÓFAGO!", "Pagófago bom é pagófago morto!", "Queime no inferno, pagófago!". 
     O povo fazia protestos em frente à casa, pediam que Osvaldo deixasse a cidade. Os jornais estampavam relatos de moradores que afirmavam terem sido atacados pelo maldito pagófago. Os relatos eram terrivelmente assustadores.
       O pobre Osvaldo apenas aparecia à janela, em prantos. Cada vez mais debilitado. Certa vez pediu compreensão, mas foi abafado pelos gritos da multidão enfurecida. 
      Osvaldo não compreendia tanta ódio, tanta intolerância. Ele precisava de ajuda, de amigos.       Marcos, filho de Osmarina, estava cansado de ver sua mãe sofrendo, de viver a insegurança que havia na cidade, oriunda da presença de um pagófago. Não pensou duas vezes. No meio da madrugada, ateou fogo à casa do monstro. 
       Quando o sol surgiu no horizonte, a cidade reuniu-se em frente aos restos da casa de Osvaldo. O corpo carbonizado estava agarrado ao que havia restado da geladeira. A cidade não comentou nada.   Limpou-se a bagunça, apagaram-se as pichações e o caso foi abafado. Tudo estava bem, mas o trauma ficaria para sempre.  
      Marcos teve a ideia de elaborar um clube especializado em identificar pagófagos, visava à proteção da cidade. Antes de fundar o grupo, no entando, decidiu saber de uma vez por todas o que significava “pagófago”. Assim que descobriu, desistiu da ideia de criar a equipe e saiu da cidade apressado. Abandonou tudo e nunca mais fora visto.     

Vocabulário  
Agnosia = capacidade intelectual limitada; burrice.  
Pagofagia = distúrbio alimentar que faz com que o indivíduo tenha compulsão por comer gelo. Pode causar anemia, fraqueza, emagrecimento descomunal.  

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A cadeira de balanço

              



  Não sei quando aquela rotina começou, mas confesso que ela nunca foi cansativa. Todos os dias, desde que me lembro, eu passava pela porta de madeira e já via, de cara, a cadeira de balanço no canto da sala. 
  Lá estava ela, meu porto seguro. Não a cadeira, mas a pessoa que nela sentava, minha avó.                   
  Chegava e, imediatamente, contava como tinha sido meu dia, meu sonho da noite passada, ou a prova que tive na escola. A vó escutava, paciente e sorridente, preparando-se dar um conselho, um sermão ou simplesmente para me acolher num abraço e voltar a balançar-se na cadeira que rangia um pouco. E o ritual repetiu-se por dezessete anos.  
  Lembro do dia em que cheguei da escola e encontrei a cadeira vazia, incompleta. Minha avó não estava lá, nem na cadeira, nem na cozinha, preparando toda a comida do mundo para engordar os netos. Não demorou muito para ela chegar, ofegante, sem ar, mas, como sempre, sorridente.  
  Quando o exame mostrou a pequena mancha no pulmão, ela não escondeu o medo. Pensamos que não era nada de muito grave, até descobrir, por meio do segundo exame, que a mancha era maior que o pulmão e, aos poucos, maior que muitos outros órgãos.  
  A doença era rara e fazer o exame para descobrir a gravidade dos tumores seria como cometer suicídio. Minha avó viveria mais tempo se aprendesse a conviver com a morte, que já vivia dentro dela, aumentando de tamanho, tomando conta de seu corpo. 
  Em pouco tempo, a cadeira de balanço tornou-se uma prisão. Era impossível, para minha avó, levantar-se. Era doloroso, cansativo, cada vez mais difícil. Nem se balançar era agradável. 
  Impotência, foi o que senti quando vi a pessoa que eu mais amava  definhar diante de mim sem que eu pudesse fazer alguma coisa para mudar a situação. Ela enfraqueceu, perdeu metade do peso, não respirava sozinha, não conversava e, com o passar dos dias, olhava apenas para o chão.  
  Saiu da cadeira para ser aprisionada em uma cama de hospital. Rodeada por aparelhos, médicos e dezenas de pacientes em estados deploráveis. 
  Na tarde em que ela, na ânsia de acabar com um sofrimento descomunal, arrancou de sua face os tubos que a alimentavam e forneciam-lhe oxigênio, foi preciso amarrá-la, prender seus braços e pernas à cama que seria sua maior tortura. Passei algumas noites no hospital, escutando os lamentos e delírios de minha avó, que já nem sabia mais quem eu era.  
  Acredite, não há coisa pior do que não ser reconhecido por uma pessoa que você ama, que te conhece desde que você existe. É como perder tudo, até mesmo aquilo jamais julgamos impossível de ser perdido.
  Continuei perguntando-me o que eu poderia fazer para amenizar a dor dela. Uma enfermeira disse que o melhor que eu poderia fazer era rezar. Rezar? Para quem? Deus? Aquele, misericordioso e bom, que pode tudo e é o bem soberano? Ao qual minha vó foi fiel a vida inteira? Onde estava aquele Deus? 
  Algumas noites depois, mais precisamente no dia 23 de novembro de 2014, o corpo de minha avó ganhou sua última prisão. A mais dolorosa. O vazio que ela deixou para mim não pode ser expresso em palavras, nem em lágrimas. É imensurável. 
  Ainda tenho esperança de um dia encontrar ela e não contar como foi meu dia, mas contar como foi minha vida. Ainda tenho esperança de que, um dia, a cadeira volte a balançar.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Donde vivem os reflexos.


         Nasci reflexo pelo o que considerei um descuido da Criação. Não reclamo da condição em que vivo, pois sei que poderia ser pior. 
               Estou preso a um humano, uma raça interessante, admito. Levo uma vida normal, mas não sou completamente dono da minha existência. Não possuo autonomia, nenhum tipo de liberdade para fazer aquilo que eu bem queira com a minha vida. 
             Necessito ( lê-se: tenho obrigação ) de estar sempre à disposição do ser humano cujo qual sou o reflexo. Sempre que ele se olha frente a um espelho, ou passa próximo a uma vitrine, eu estou lá. Fui treinado desde sempre para imitar os movimentos de meu humano, e isso faz com o que a criatura pense que está vendo apenas uma projeção de si mesma quando, na verdade, vê a mim.
               O Homem, em toda sua existência, quase nunca desconfiou que pudesse existir um mundo dentro do espelho, uma dimensão em que seu reflexo possui sentimentos e vontades mais fortes do que as suas próprias. Nossa sociedade foi ameaçada quando um de nós simplesmente abandonou seu humano. O desgraçado passou a não possuir reflexo, foi terrível. Esse fato, caro leitor, inspirou histórias que surgiram em seu mundo, histórias fictícias sobre vampiros e outras criaturas estranhas. 
             Confesso que, antigamente, a vida da minha espécie era mais fácil, tínhamos tempo para uma  certa independência, uma existência longe dos donos de nossas formas. Mas agora, nesse mundo onde tudo é feito de vidro, espelho e metal, vivemos praticamente como as tristes Sombras, eternamente presos aos seres humanos. 
                Dizem que a desgraça alheia nos consola, e é verdade. As sombras sofrem mais do que nós, são desvalorizadas, mudas, cegas e surdas, praticamente uma aberração; contudo, elas nem têm noção disso, vivem como vegetais, logo, para elas nem faz diferença. Seria a existência das sombras um consolo para mim?  
               Não há mais o lado bom de ser um reflexo. Tornamo-nos mais importantes do que o próprio ser físico, somos a imagem, e sofremos com isso. Nunca imaginamos que um dia vocês, tão inteligentes humanos, importar-se-iam mais com seus reflexos, com suas imagens, do que com suas vidas e almas. Quem nos dera termos o que vocês têm. 
             Não aguentamos mais sofrer tantas modificações em nome do seu bem estar. Por favor, percebam que não é nossa forma que representa vocês, não somos suas verdadeiras imagens. Aquilo que realmente mostra o que o ser humano é não está refletido em lugar nenhum a não ser na vida do próprio. Diante disso, seres humanos, se me permite dar um conselho, deixe-nos em paz e vivam a vida que não nos é permitida. 
    






    

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

FDP

   
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    Joel aprendeu desde cedo que ofender a mãe dos outros era como declarar guerra ao filho xingado. As agressões variavam, de "filho da mãe" (coisa que, para ele, todos eram) até "filho da puta". Ah, essa era a pior! Joel não sabia o que era uma puta, mas não devia ser algo bom, afinal, viu Wilson espancar o pobre Douglas quando este o xingou com voracidade. Na verdade, nem Douglas nem Wilson sabiam o que significava ser filho da puta. Ninguém sabia. A terceira série era assim: todos pareciam especialistas na arte de não saber de nada. As crianças apenas imitavam os mais velhos, buscando destaque, atenção.     
      Depois de alguns meses, as ofensas perderam a graça. Os filhos sabiam que suas mães não eram putas, mesmo sem saber o significado da palavra. Não se importavam, portanto, com o que era falado. A diversão agora era irritar as meninas e chamar o menino mais quieto de "bicha", todos achavam hilário (exceto as meninas e o garoto que ficava quieto). Contudo, Joel estava preso à história da ofensa, emperrado lá. No Dia do Trabalho, viu os colegas dizerem em voz alta a profissão de seus pais: engenheiros, médicas, advogadas, arquitetos, entre outras tantas e fabulosas. Na vez de Joel, o silêncio predominou. O garoto não tinha pai e a mãe trabalhava com ... Com o quê?!   
     Cláudia saía para trabalhar quando Joel dormia, voltava um pouco antes do garoto acordar. Saía muito maquiada e com roupa de festa, voltava chorando e, certas vezes, com alguns hematomas. Todavia, a tristeza desaparecia quando olhava o rosto de Joel que, em sua cama, dormia como um anjo. Nossa, como amava aquele filho! Realizaria o impossível para protegê-lo e, sinceramente, não se importava com que era necessário fazer para garantir boas condições de vida ao pequeno.   
    Às vezes, quando tinha tempo e dinheiro, ou seja, raramente, Claúdia comprava um brinquedo para seu filho antes de chegar em casa. Sempre passava na padaria para pegar o sanduíche favorito de Joel e tudo era recompensado pelo sorriso que surgia no rosto do garoto, que entrava num estado de pura felicidade quando via a mãe.  
    Houve dias em que o garoto não ficara feliz com um sanduíche ou brinquedo. Noites terríveis, madrugadas marcadas com pesadelos que faziam Joel acordar assustado, procurando a mãe que nunca estava em casa. Na maioria das vezes, Joel não queria nada além da própria mãe.    
     Quando fez catorze anos, a angústia de Joel teve fim. Simulou um sono pesado e decidiu que seguiria sua mãe noite adentro aonde quer que ela fosse. Encontrou Cláudia em uma esquina suja, rodeada de outras mulheres que pareciam prontas para ir à mesma festa que a mãe da Joel ia todas as noites. Antes que o garoto se desse conta do que estava acontecendo, um carro parou ao lado de sua mãe que, após uma breve conversa com o motorista, entrou no veículo que rumou em direção a um motel barato.   
    Decepção, depois raiva. Foi o que Joel sentiu, com a maior intensidade possível. Não contou para a mãe que sabia de tudo, decidiu ser frio, como um cadáver. Ignorava Cláudia completamente. Desabafou com o melhor amigo - Jonas - que foi um bom ouvinte; porém, após um pequeno desentendimento, fez questão de contar para a escola inteira que a mãe de Joel era garota de programa.  
     O garoto chegou em casa não mais com raiva da mãe, mas com ódio do mundo. Entrou no quarto e ligou a TV no volume máximo, esperando que o som silenciasse as gargalhadas e deboches que ainda ecoavam em sua mente. Desviou a atenção para o telejornal, bem em tempo de ver os absurdos. Um médica que fraudava receitas, advogados que ganhavam muito dinheiro prejudicando inocentes, entre outros criminosos que foram presos em uma mesma operação. Quando via o rosto dos presos, foi reconhecendo Marley, Fernando, Luís e Rosiana, pais de seus amigos e colegas, todos lá, atrás das grades.    
    Joel olhou ao redor, tinha uma boa casa. Tudo o que precisava estava ali, sempre esteve. E o melhor, nunca ninguém foi prejudicado para que tudo estivesse lá. No dia seguinte, antes de sair para a escola, abraçou forte Cláudia, que não segurou as lágrimas. Assim que entrou na sala de aula, um colega (cuja mãe era a tal médica desprovida de ética profissional) gritou "Ei, seu filho da puta!". Joel, sem pensar muito, respondeu: 

- Filho da puta, sim. Com muito orgulho!