domingo, 9 de agosto de 2015

A cidade que não tinha Aurélio

        Santa Agnosia do Sul era uma cidade interiorana pacata. Eu sei, é isso o que dizem sobre a maioria das cidades interioranas, certo? Mas, de fato, era verdade.
            Era raro que houvesse algum crime, acidente de carro, etc. Quando algo desse tipo acontecia, a cidade inteira (três mil habitantes) ficava sabendo. Todos saíam às ruas, com seus rostos de expressão curiosa e, de certa forma, contente por algo ter acontecido por aquelas bandas que, geralmente, eram entediantes.
            Todos os moradores de Santa Agnosia do Sul lembravam-se do dia em que Seu Jean roubou um pão para saciar sua fome. Um escândalo! Um ladrão! Quem diria que Seu Jean seria capaz de roubar! Foi expulso da cidade imediatamente. Sim, expulso.
        Sta. Agnosia do Sul é uma daquelas cidades que tem sua própria lei. Quase que um "coronelismo moderno", sim.
             O fato é que Seu Jean alegou estar interpretando um personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo; contudo, ninguém sabia quem era Victor Hugo e, se havia roubado, miserável era o próprio Seu Jean. Foi expulso de qualquer maneira.
            Não sei, caro(a) leitor(a), se você percebeu, mas eu disse que a cidade era pacata. No passado. Isso mudou com a chegada de Seu Osvaldo.
            Foi durante a tarde de um domingo que o carro parou fronte a antiga casa de Seu Jean. Era Osvaldo, o mais novo morador da cidade. 
            Havia comprado algumas terras e parecia querer plantar milho, ninguém sabia ao certo. Ao longo de toda a semana, muitos vizinhos foram visitar e se apresentar para Osvaldo. Parecia um homem bom, digno, honesto. Só parecia.  
           Dona Osmarina fez sua famosa feijoada e chamou a rua inteira para confraternizar em sua casa. Era dia de comemoração. Seu filho, Marcos, estava noivando. 
             Chamaram todos, inclusive Seu Osvaldo, que contou piadas, riu e conversou, mas não bebeu, nem comeu. Era de se estranhar, afinal, ninguém resistia à feijoada de Dona Osmarina. Em dado instante da noite, Osvaldo começou a ficar trêmulo, espumar pela boca e, sem se despedir de ninguém, irrompeu pela porta de frente e desapareceu na rua escura. 
          Ninguém viu Seu Osvaldo pelo resto do mês. Quando finalmente saiu da casa, estava pálido, esquálido, lânguido. Caminhou pela cidade, cumprimentando a todos, que o miravam-no com medo, desviando de seu olhar. 
          Já estava marcado: Osvaldo deveria ser evitado.  
         O pobre homem almoçou na quitanda de Seu Jerônimo, onde sentou-se só, mas logo recebeu a companhia da própria Dona Osmarina, que já chegou indagando o porquê dos estranhos modos do mais recente morador de Santa Agnosia do Sul.
          Após algumas garrafas de cerveja e respostas sem sentido, Osvaldo confessou, em voz baixa e com lágrimas nos olhos, que era um pagófago. Implorou a Dona Osmarina para que ela não dissesse a ninguém, mas o pedido não surtiu efeito.  Ao final do mesmo dia, a cidade inteira sabia que Seu Osvaldo era um pagófago.   

"Tu não vais acreditar! Sabe o Osvaldo? É pagófago! Disse-me isso ontem na cara dura!", dizia Osmarina a todos com quem encontrava.   

"O que é um pagófago?!", perguntavam alguns.  

"Ah, coisa boa não é! Ele me disse isso cho-ran-do!", concluía Osmarina.   

      As atitudes de Seu Osvaldo tornaram-se mais estranhas. Todos odiavam-no. Lançavam pedras e ovos em sua casa. Havia pichações por toda a rua, diziam: "FORA PAGÓFAGO!", "Pagófago bom é pagófago morto!", "Queime no inferno, pagófago!". 
     O povo fazia protestos em frente à casa, pediam que Osvaldo deixasse a cidade. Os jornais estampavam relatos de moradores que afirmavam terem sido atacados pelo maldito pagófago. Os relatos eram terrivelmente assustadores.
       O pobre Osvaldo apenas aparecia à janela, em prantos. Cada vez mais debilitado. Certa vez pediu compreensão, mas foi abafado pelos gritos da multidão enfurecida. 
      Osvaldo não compreendia tanta ódio, tanta intolerância. Ele precisava de ajuda, de amigos.       Marcos, filho de Osmarina, estava cansado de ver sua mãe sofrendo, de viver a insegurança que havia na cidade, oriunda da presença de um pagófago. Não pensou duas vezes. No meio da madrugada, ateou fogo à casa do monstro. 
       Quando o sol surgiu no horizonte, a cidade reuniu-se em frente aos restos da casa de Osvaldo. O corpo carbonizado estava agarrado ao que havia restado da geladeira. A cidade não comentou nada.   Limpou-se a bagunça, apagaram-se as pichações e o caso foi abafado. Tudo estava bem, mas o trauma ficaria para sempre.  
      Marcos teve a ideia de elaborar um clube especializado em identificar pagófagos, visava à proteção da cidade. Antes de fundar o grupo, no entando, decidiu saber de uma vez por todas o que significava “pagófago”. Assim que descobriu, desistiu da ideia de criar a equipe e saiu da cidade apressado. Abandonou tudo e nunca mais fora visto.     

Vocabulário  
Agnosia = capacidade intelectual limitada; burrice.  
Pagofagia = distúrbio alimentar que faz com que o indivíduo tenha compulsão por comer gelo. Pode causar anemia, fraqueza, emagrecimento descomunal.  

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