domingo, 2 de março de 2014

Carnaval Formal

   


    Já eram mais de oito horas quando Sara acordou. Estava atrasada, ela sabia; porém, não ia apressar-se, não suportava mais sua vida. 
     O país estava um inferno, pelo menos há alguns anos. A copa de 2014 fora sido a maior farsa do mundo e as olimpíadas, bem, prefiro não comentar. Mas é importante saber que esta última resultou em mais mortes do que a guerra do Iraque. O resultado? O Brasil deixou se ser um dos "destinos turísticos do mundo" e a crise veio com tudo. Não demorou muito para a coisa ficar bem feia. 
   A lei que iria mudar o rumo do país veio em 2024. A norma dizia que nosso querido Brasil passaria 360 dias do ano em "espírito de carnaval". Ou seja, não seriam trezentos e poucos dias de feriado, mas, durante o ano inteiro, a "alegria", o "bom humor" e a "zoeira" eram leis. E, pasmem vocês, a regra era obedecida. 
   Todos os dias era obrigatório o uso de fantasias. As pessoas iam trabalhar, estudar ou fazer sei lá eu o quê, vestidas, ou melhor, "despidas", como no carnaval. Fantasias, mini biquínis, nudez, trajes de até cinquenta quilos eram a realidade cotidiana de nosso país. As avenidas e estradas não possuíam mais automóveis de passeio ou caminhões. Em vez disso, centenas de alegorias colossais transportavam pessoas, animais e outras cargas. O preço do transporte variava de acordo com a beleza da alegoria. Tigres de fibra gigantescos e ursos coloridos do tamanho de pequenos prédios circulavam por entre as avenidas e ruas. O samba era um hino e o desleixo um dever. 
   Finalmente o Brasil havia se transformado num imundo banheiro de rodoviária, e é claro que isso trouxe turistas. O país estava fazendo jus à toda a fama que possuía lá fora. A prostituição era a profissão mais valorizada, mais aceita. O estudo era desnecessário, desde que você soubesse sambar e amasse aquela batida. E não eram sambas clássicos, não! Era samba enredo, com rimas óbvias e repetitivas. Esse era um novo Brasil, infelizmente. 
    Sara odiava isso tudo. Queria ser médica, mas não era fácil. Todo santo dia ela tinha que vestir sua micro roupa de plástico, pendurar as penas nas costas e pegar a primeira alegoria que fosse para o centro. Sempre estampando um sorriso falso no rosto cansado, afinal, caso não o fizesse, seria jogada na cadeia por descumprir a Lei da Alegria. Lá no centro, começava a batalha. Trabalhava o dia inteiro, até metade da tarde e depois ia direto para a faculdade. Aliás, a faculdade que era considerada por todos um lugar de loucos. Afinal, educação e cultura para quê? Já que estávamos no país do futebol, da festa, da alegria...
   O dia demorou a terminar e Sara chegou em casa depois de seu marido. Dormiram logo e, quando acordaram, sorriram. Sorriram de verdade. Uma alegria espetacular. Era feriado. Mas não era um feriado comum. 
  Era DESCARNAVAL, ou melhor, "não-carnaval". Aqueles eram os cinco melhores dias do ano. Em pleno fevereiro, o mês da falecida que festa que agora durava o ano todo, havia um feriado prolongado onde tudo voltaria a ser como antes. Durante esses dias, a Lei da Alegria silenciava. Aos poucos, o país acordava, vestia-se elegantemente, escutava todo e qualquer tipo de música, ia ao cinema, ao teatro, liam-se livros. Eram dias felizes. 
  Sara levantou e colocou sua melhor calça jeans e a camiseta de sua banda favorita. Nossa, fazia tanto tempo que ela não colocava jeans. E Jorge, seu marido, vestiu a melhor e mais confortável roupa possível. Saíram os dois, caminhando pela cidade silenciosa, livres, feliz de verdade pela primeira vez em meses.
   Os dois caminharam por horas, pararam em uma praça onde centenas de pessoas conversavam, riam, liam, escreviam e brincavam. Tudo isso com uma pureza jamais vista. É, seria um ótimo feriado.