domingo, 4 de outubro de 2015

Divino ENEM

        Fulana estava cansada de tanta pressão. Maldito vestibular! Maldito ENEM! Não aguentava mais. Para piorar, tinha que lidar com as falsianes do cotidiano e com os comentários do tipo “Eu conto contigo!”, “Sei que você consegue!”, “Você vai ir bem, afinal você só estuda, né?”.  
         Aflita, exaurida, desnorteada. Nenhuma palavra expressava o que ela sentia: medo, cansaço, dor, raiva. Havia, ainda por cima, aquelas pessoas que nada diziam, mas sorriam e olhavam para ela com uma esperança sem fim. Credo, aquele olhar era pior do que qualquer frase de apoio pronunciada em voz alta.
           Foi num momento de desespero (após perceber que havia errado todas as questões de literatura do simulado) que aconteceu o pior: Fulana jogou-se do último andar do prédio onde morava. Ao passar, em queda, pela janela de seu quarto, conseguiu ver o vulto vermelho em cima da cama. Era a capa da apostila do cursinho! Deus, esse seria seu último pensamento?! A droga do vestibular?! Sim, seria. Foi.
(...)
           Abriu os olhos. Estava numa sala clara, sentada na ponta de uma longa mesa. Do outro lado, na outra extremidade da mesa, estava uma sorridente menina. Parecia ter quase a mesma idade de Fulana, uns 19 anos, e segurava uma prancheta. Sobre sua cabeça, flutuava uma auréola lilás brilhante.

- Teu nome? – Perguntou, sorridente, a anjinha.

- Fulana.

- Ah, sim! É o que está aqui! Achei que fosse alguma piada do estagiário. Por que diabos tu te chama fulana? – Perguntou isso hesitando ao falar “diabos”.

- Meus pais estavam em dúvida entre muitos nomes, resolveram colocar um genérico. Estou no céu?

- Não, mas esse é o caminho! Só preciso de uns dados teus e já te entrego as apostilas.

- Como assim? O que está acontecendo?

- Ora, tu te matou, não? É por isso que tu tá aqui!

- Sim, eu...

- Então, quem se mata não entra no céu direto, não. Tem que fazer o Exame Universal de Oriundos de Suicídio, o EUOS. São dois dias de prova, no primeiro dia cai o Velho Testamento, no segundo cai o Novo Testamento mais uma redação sobre algum tema da Idade Média, que era a nossa idade de ouro. Saudades, inclusive!

- Eu não estou acreditando nisso! Tem ENEM depois da morte?!

- SHHHHIIIIIUUUU! Não fala essa palavra! Essa provinha da Terra é coisa do Caipiroto, mas o pessoal aqui curtiu a ideia e resolveu adaptar.

- Isso é plágio! É um absurdo! Eu me matei para não fazer nenhuma prova e agora...  Quero falar com Deus!

-  Ah, também queria, juro! Só conheço Ele de vista, mas parece ser um cara legal.

- Dois dias de prova? – Lamentou, ignorando a resposta da anja.  – Eu terei que fazer prova durante dois dias, mesmo depois da morte?!

- Isso! Ah, nem é tanto, para de frescura! Dizem que o Chefe fez o mundo em sete! Dois dias de prova é tranquilo. Pensa, só tem uma leitura obrigatória...

- Ah, sim! Só a Bíblia inteira! Tem prova no Céu! Isso é um inferno!

- Shhhhhiiiiuuuuuu! Não fala essa palavra! E não, não é um inferno. Para entrar no Inferno é só fazer um desenho livre, nem precisa colocar chão! Tu acredita?! Tem lugares e lugares, né... E sim, tem prova! Assim na Terra como no Céu...

- Quando é a prova? Como funciona isso? – Perguntou, já chorando, Fulana.

- Ah, fica tranquila, é daqui a um ano só! Vai ter cursinho preparatório. Esse ano São José vai dar aula! Dizem que vai ser divertidíssimo!

- Eu quero morrer...

- Já está morta, criatura! Antes do tempo, aliás. Estuda bastante e te prepara, de verdade. Têm bastantes oportunidades, sabe?

- Quantos alunos, digo, suicidas têm por vaga?

- Ah, nem sei ainda, porque não saiu o edital. Ano passado eram trinta e cinco mil por vaga. Então...

- Trinta e cinco mil? Tem tantos suicidas assim na Terra?

- Ah, não! De forma alguma! É somando os planetas todos...

- Planetas? Tem outros planetas?

- Sim! Vocês estavam perto de descobrir, mas tu te matou antes, criatura! Sem mais delongas, vamos aos dados...
     
          Fulana informou tudo com uma tristeza profunda. Se arrependimento matasse... não teria acontecido nada, pois ela já estava morta.
         Não adiantou lamentar. Pegou as apostilas e fez o cursinho preparatório, depois a prova. Tentou uma, duas, quatro, sessenta vezes, mas não conseguiu passar. Os suicidas do Planeta Otrec eram sempre os melhores, fato!
        Fulana já estava ouvindo piadas dos anjos e vendo olhares debochados dos arcanjos quando ganhou uma bolsa num setor menos importante do Céu. Entrou, não gostou do lugar. Voltou pra Terra, nasceu em São Paulo decidida: dessa vez eu passo na federal! Passou.