Fulana estava cansada de tanta pressão. Maldito vestibular!
Maldito ENEM! Não aguentava mais. Para piorar, tinha que lidar com as falsianes
do cotidiano e com os comentários do tipo “Eu conto contigo!”, “Sei que você
consegue!”, “Você vai ir bem, afinal você só estuda, né?”.
Aflita, exaurida, desnorteada. Nenhuma palavra expressava o
que ela sentia: medo, cansaço, dor, raiva. Havia, ainda por cima, aquelas
pessoas que nada diziam, mas sorriam e olhavam para ela com uma esperança sem
fim. Credo, aquele olhar era pior do que qualquer frase de apoio pronunciada em
voz alta.
Foi num momento de desespero (após perceber que havia errado
todas as questões de literatura do simulado) que aconteceu o pior: Fulana
jogou-se do último andar do prédio onde morava. Ao passar, em queda, pela
janela de seu quarto, conseguiu ver o vulto vermelho em cima da cama. Era a
capa da apostila do cursinho! Deus, esse seria seu último pensamento?! A droga
do vestibular?! Sim, seria. Foi.
(...)
Abriu os olhos. Estava numa sala clara, sentada na ponta de
uma longa mesa. Do outro lado, na outra extremidade da mesa, estava uma sorridente
menina. Parecia ter quase a mesma idade de Fulana, uns 19 anos, e segurava uma
prancheta. Sobre sua cabeça, flutuava uma auréola lilás brilhante.
- Teu nome? – Perguntou, sorridente, a anjinha.
- Fulana.
- Ah, sim! É o que está aqui! Achei que fosse alguma piada
do estagiário. Por que diabos tu te chama fulana? – Perguntou isso hesitando ao
falar “diabos”.
- Meus pais estavam em dúvida entre muitos nomes, resolveram
colocar um genérico. Estou no céu?
- Não, mas esse é o caminho! Só preciso de uns dados teus e
já te entrego as apostilas.
- Como assim? O que está acontecendo?
- Ora, tu te matou, não? É por isso que tu tá aqui!
- Sim, eu...
- Então, quem se mata não entra
no céu direto, não. Tem que fazer o Exame Universal de Oriundos de Suicídio, o
EUOS. São dois dias de prova, no primeiro dia cai o Velho Testamento, no
segundo cai o Novo Testamento mais uma redação sobre algum tema da Idade Média,
que era a nossa idade de ouro. Saudades, inclusive!
- Eu não estou acreditando nisso!
Tem ENEM depois da morte?!
- SHHHHIIIIIUUUU! Não fala essa
palavra! Essa provinha da Terra é coisa do Caipiroto, mas o pessoal aqui curtiu
a ideia e resolveu adaptar.
- Isso é plágio! É um absurdo! Eu
me matei para não fazer nenhuma prova e agora... Quero falar com Deus!
- Ah, também queria, juro! Só conheço Ele de
vista, mas parece ser um cara legal.
- Dois dias de prova? – Lamentou,
ignorando a resposta da anja. – Eu terei
que fazer prova durante dois dias, mesmo depois da morte?!
- Isso! Ah, nem é tanto, para de
frescura! Dizem que o Chefe fez o mundo em sete! Dois dias de prova é
tranquilo. Pensa, só tem uma leitura obrigatória...
- Ah, sim! Só a Bíblia inteira! Tem prova no Céu! Isso é um inferno!
- Shhhhhiiiiuuuuuu! Não fala essa
palavra! E não, não é um inferno. Para entrar no Inferno é só fazer um desenho
livre, nem precisa colocar chão! Tu acredita?! Tem lugares e lugares, né... E sim, tem prova! Assim na Terra como no Céu...
- Quando é a prova? Como funciona
isso? – Perguntou, já chorando, Fulana.
- Ah, fica tranquila, é daqui a
um ano só! Vai ter cursinho preparatório. Esse ano São José vai dar aula! Dizem
que vai ser divertidíssimo!
- Eu quero morrer...
- Já está morta, criatura! Antes
do tempo, aliás. Estuda bastante e te prepara, de verdade. Têm bastantes oportunidades,
sabe?
- Quantos alunos, digo, suicidas têm
por vaga?
- Ah, nem sei ainda, porque não
saiu o edital. Ano passado eram trinta e cinco mil por vaga. Então...
- Trinta e cinco mil? Tem tantos suicidas
assim na Terra?
- Ah, não! De forma alguma! É
somando os planetas todos...
- Planetas? Tem outros planetas?
- Sim! Vocês estavam perto de
descobrir, mas tu te matou antes, criatura! Sem mais delongas, vamos aos dados...
Fulana informou tudo com uma
tristeza profunda. Se arrependimento matasse... não teria acontecido nada, pois
ela já estava morta.
Não adiantou lamentar. Pegou as
apostilas e fez o cursinho preparatório, depois a prova. Tentou uma, duas,
quatro, sessenta vezes, mas não conseguiu passar. Os suicidas do Planeta Otrec
eram sempre os melhores, fato!
Fulana já estava ouvindo piadas
dos anjos e vendo olhares debochados dos arcanjos quando ganhou uma bolsa num setor
menos importante do Céu. Entrou, não gostou do lugar. Voltou pra Terra, nasceu
em São Paulo decidida: dessa vez eu passo na federal! Passou.