quarta-feira, 22 de julho de 2015

A cadeira de balanço

              



  Não sei quando aquela rotina começou, mas confesso que ela nunca foi cansativa. Todos os dias, desde que me lembro, eu passava pela porta de madeira e já via, de cara, a cadeira de balanço no canto da sala. 
  Lá estava ela, meu porto seguro. Não a cadeira, mas a pessoa que nela sentava, minha avó.                   
  Chegava e, imediatamente, contava como tinha sido meu dia, meu sonho da noite passada, ou a prova que tive na escola. A vó escutava, paciente e sorridente, preparando-se dar um conselho, um sermão ou simplesmente para me acolher num abraço e voltar a balançar-se na cadeira que rangia um pouco. E o ritual repetiu-se por dezessete anos.  
  Lembro do dia em que cheguei da escola e encontrei a cadeira vazia, incompleta. Minha avó não estava lá, nem na cadeira, nem na cozinha, preparando toda a comida do mundo para engordar os netos. Não demorou muito para ela chegar, ofegante, sem ar, mas, como sempre, sorridente.  
  Quando o exame mostrou a pequena mancha no pulmão, ela não escondeu o medo. Pensamos que não era nada de muito grave, até descobrir, por meio do segundo exame, que a mancha era maior que o pulmão e, aos poucos, maior que muitos outros órgãos.  
  A doença era rara e fazer o exame para descobrir a gravidade dos tumores seria como cometer suicídio. Minha avó viveria mais tempo se aprendesse a conviver com a morte, que já vivia dentro dela, aumentando de tamanho, tomando conta de seu corpo. 
  Em pouco tempo, a cadeira de balanço tornou-se uma prisão. Era impossível, para minha avó, levantar-se. Era doloroso, cansativo, cada vez mais difícil. Nem se balançar era agradável. 
  Impotência, foi o que senti quando vi a pessoa que eu mais amava  definhar diante de mim sem que eu pudesse fazer alguma coisa para mudar a situação. Ela enfraqueceu, perdeu metade do peso, não respirava sozinha, não conversava e, com o passar dos dias, olhava apenas para o chão.  
  Saiu da cadeira para ser aprisionada em uma cama de hospital. Rodeada por aparelhos, médicos e dezenas de pacientes em estados deploráveis. 
  Na tarde em que ela, na ânsia de acabar com um sofrimento descomunal, arrancou de sua face os tubos que a alimentavam e forneciam-lhe oxigênio, foi preciso amarrá-la, prender seus braços e pernas à cama que seria sua maior tortura. Passei algumas noites no hospital, escutando os lamentos e delírios de minha avó, que já nem sabia mais quem eu era.  
  Acredite, não há coisa pior do que não ser reconhecido por uma pessoa que você ama, que te conhece desde que você existe. É como perder tudo, até mesmo aquilo jamais julgamos impossível de ser perdido.
  Continuei perguntando-me o que eu poderia fazer para amenizar a dor dela. Uma enfermeira disse que o melhor que eu poderia fazer era rezar. Rezar? Para quem? Deus? Aquele, misericordioso e bom, que pode tudo e é o bem soberano? Ao qual minha vó foi fiel a vida inteira? Onde estava aquele Deus? 
  Algumas noites depois, mais precisamente no dia 23 de novembro de 2014, o corpo de minha avó ganhou sua última prisão. A mais dolorosa. O vazio que ela deixou para mim não pode ser expresso em palavras, nem em lágrimas. É imensurável. 
  Ainda tenho esperança de um dia encontrar ela e não contar como foi meu dia, mas contar como foi minha vida. Ainda tenho esperança de que, um dia, a cadeira volte a balançar.