sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Donde vivem os reflexos.


         Nasci reflexo pelo o que considerei um descuido da Criação. Não reclamo da condição em que vivo, pois sei que poderia ser pior. 
               Estou preso a um humano, uma raça interessante, admito. Levo uma vida normal, mas não sou completamente dono da minha existência. Não possuo autonomia, nenhum tipo de liberdade para fazer aquilo que eu bem queira com a minha vida. 
             Necessito ( lê-se: tenho obrigação ) de estar sempre à disposição do ser humano cujo qual sou o reflexo. Sempre que ele se olha frente a um espelho, ou passa próximo a uma vitrine, eu estou lá. Fui treinado desde sempre para imitar os movimentos de meu humano, e isso faz com o que a criatura pense que está vendo apenas uma projeção de si mesma quando, na verdade, vê a mim.
               O Homem, em toda sua existência, quase nunca desconfiou que pudesse existir um mundo dentro do espelho, uma dimensão em que seu reflexo possui sentimentos e vontades mais fortes do que as suas próprias. Nossa sociedade foi ameaçada quando um de nós simplesmente abandonou seu humano. O desgraçado passou a não possuir reflexo, foi terrível. Esse fato, caro leitor, inspirou histórias que surgiram em seu mundo, histórias fictícias sobre vampiros e outras criaturas estranhas. 
             Confesso que, antigamente, a vida da minha espécie era mais fácil, tínhamos tempo para uma  certa independência, uma existência longe dos donos de nossas formas. Mas agora, nesse mundo onde tudo é feito de vidro, espelho e metal, vivemos praticamente como as tristes Sombras, eternamente presos aos seres humanos. 
                Dizem que a desgraça alheia nos consola, e é verdade. As sombras sofrem mais do que nós, são desvalorizadas, mudas, cegas e surdas, praticamente uma aberração; contudo, elas nem têm noção disso, vivem como vegetais, logo, para elas nem faz diferença. Seria a existência das sombras um consolo para mim?  
               Não há mais o lado bom de ser um reflexo. Tornamo-nos mais importantes do que o próprio ser físico, somos a imagem, e sofremos com isso. Nunca imaginamos que um dia vocês, tão inteligentes humanos, importar-se-iam mais com seus reflexos, com suas imagens, do que com suas vidas e almas. Quem nos dera termos o que vocês têm. 
             Não aguentamos mais sofrer tantas modificações em nome do seu bem estar. Por favor, percebam que não é nossa forma que representa vocês, não somos suas verdadeiras imagens. Aquilo que realmente mostra o que o ser humano é não está refletido em lugar nenhum a não ser na vida do próprio. Diante disso, seres humanos, se me permite dar um conselho, deixe-nos em paz e vivam a vida que não nos é permitida. 
    






    

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

FDP

   
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    Joel aprendeu desde cedo que ofender a mãe dos outros era como declarar guerra ao filho xingado. As agressões variavam, de "filho da mãe" (coisa que, para ele, todos eram) até "filho da puta". Ah, essa era a pior! Joel não sabia o que era uma puta, mas não devia ser algo bom, afinal, viu Wilson espancar o pobre Douglas quando este o xingou com voracidade. Na verdade, nem Douglas nem Wilson sabiam o que significava ser filho da puta. Ninguém sabia. A terceira série era assim: todos pareciam especialistas na arte de não saber de nada. As crianças apenas imitavam os mais velhos, buscando destaque, atenção.     
      Depois de alguns meses, as ofensas perderam a graça. Os filhos sabiam que suas mães não eram putas, mesmo sem saber o significado da palavra. Não se importavam, portanto, com o que era falado. A diversão agora era irritar as meninas e chamar o menino mais quieto de "bicha", todos achavam hilário (exceto as meninas e o garoto que ficava quieto). Contudo, Joel estava preso à história da ofensa, emperrado lá. No Dia do Trabalho, viu os colegas dizerem em voz alta a profissão de seus pais: engenheiros, médicas, advogadas, arquitetos, entre outras tantas e fabulosas. Na vez de Joel, o silêncio predominou. O garoto não tinha pai e a mãe trabalhava com ... Com o quê?!   
     Cláudia saía para trabalhar quando Joel dormia, voltava um pouco antes do garoto acordar. Saía muito maquiada e com roupa de festa, voltava chorando e, certas vezes, com alguns hematomas. Todavia, a tristeza desaparecia quando olhava o rosto de Joel que, em sua cama, dormia como um anjo. Nossa, como amava aquele filho! Realizaria o impossível para protegê-lo e, sinceramente, não se importava com que era necessário fazer para garantir boas condições de vida ao pequeno.   
    Às vezes, quando tinha tempo e dinheiro, ou seja, raramente, Claúdia comprava um brinquedo para seu filho antes de chegar em casa. Sempre passava na padaria para pegar o sanduíche favorito de Joel e tudo era recompensado pelo sorriso que surgia no rosto do garoto, que entrava num estado de pura felicidade quando via a mãe.  
    Houve dias em que o garoto não ficara feliz com um sanduíche ou brinquedo. Noites terríveis, madrugadas marcadas com pesadelos que faziam Joel acordar assustado, procurando a mãe que nunca estava em casa. Na maioria das vezes, Joel não queria nada além da própria mãe.    
     Quando fez catorze anos, a angústia de Joel teve fim. Simulou um sono pesado e decidiu que seguiria sua mãe noite adentro aonde quer que ela fosse. Encontrou Cláudia em uma esquina suja, rodeada de outras mulheres que pareciam prontas para ir à mesma festa que a mãe da Joel ia todas as noites. Antes que o garoto se desse conta do que estava acontecendo, um carro parou ao lado de sua mãe que, após uma breve conversa com o motorista, entrou no veículo que rumou em direção a um motel barato.   
    Decepção, depois raiva. Foi o que Joel sentiu, com a maior intensidade possível. Não contou para a mãe que sabia de tudo, decidiu ser frio, como um cadáver. Ignorava Cláudia completamente. Desabafou com o melhor amigo - Jonas - que foi um bom ouvinte; porém, após um pequeno desentendimento, fez questão de contar para a escola inteira que a mãe de Joel era garota de programa.  
     O garoto chegou em casa não mais com raiva da mãe, mas com ódio do mundo. Entrou no quarto e ligou a TV no volume máximo, esperando que o som silenciasse as gargalhadas e deboches que ainda ecoavam em sua mente. Desviou a atenção para o telejornal, bem em tempo de ver os absurdos. Um médica que fraudava receitas, advogados que ganhavam muito dinheiro prejudicando inocentes, entre outros criminosos que foram presos em uma mesma operação. Quando via o rosto dos presos, foi reconhecendo Marley, Fernando, Luís e Rosiana, pais de seus amigos e colegas, todos lá, atrás das grades.    
    Joel olhou ao redor, tinha uma boa casa. Tudo o que precisava estava ali, sempre esteve. E o melhor, nunca ninguém foi prejudicado para que tudo estivesse lá. No dia seguinte, antes de sair para a escola, abraçou forte Cláudia, que não segurou as lágrimas. Assim que entrou na sala de aula, um colega (cuja mãe era a tal médica desprovida de ética profissional) gritou "Ei, seu filho da puta!". Joel, sem pensar muito, respondeu: 

- Filho da puta, sim. Com muito orgulho!