sábado, 19 de março de 2016

Verborragia

Octávio Gramanazi mostrou que tinha talento desde criança. A primeira palavra que proferiu não fora "papai", nem "mamãe", longe disso. Octávio disse, com clareza, "circunspecto". Lembro-me bem. Sua mãe, Evanila Bechará entrou na sala, olhou para o marido e disse: 

- Você está estranho. Está meio...

- Circunspecto! - Completou Octávio no alto de seus recém completos dois anos de idade. 

Daí em diante, desandou erudição. Enquanto os colegas de aula liam gibis, Octávio lia Dostoiévski. Lia no original, é claro. 

Aos vinte anos formou-se em Letras, aos trinta já tinha lançado duas gramáticas e um dicionário. Aos trinta e cinco casou. Aos trinta e seis separou-se, não suportava uma esposa que não conjugava os verbos de maneira correcta.  Aos quarenta, vivia isolado em seu apartamento, cercado por livros e longe de qualquer tipo de falante inculto. 

Assistindo a um documentário sobre a importância das línguas clássicas para a sociedade contemporânea, Octávio sentiu um fisgada no braço. Bateu com força no local picado. A bofetada doeu mais do que o pequeno incômodo anterior. Olhou para o braço. Lá estava!

Pequeno e morto, mas ainda assim aterrorizante. O pequeno mosquito listrado, transmissor de tantas mazelas, talvez o inseto mais famoso do século, causava inveja na pobre e sempre adorada joaninha. 
Octávio pegou o cadáver do pequeno com cuidado e foi até a porta da vizinha, precisava tirar a teima, tocou a campainha. 

- Olá, seu Octávio. Tudo bem com tu?

- O correto seria "contigo", mas agora não importa. A senhora pode dizer-me se este mosquito parece-lhe familiar? - Perguntou mostrando o bicho para a pobre Dona Olga. 

- Eu já vi isso! É aquele da TV! Aécio, né? Aécio Egípcio? 

- Aedes, Dona Olga. Aedes! 

- Isso! Me confundi! A mídia confunde tudo! Tem que ir ao médico. Me preocupo com o senhor, seu Octávio.

- O correto seria "preocupo-me", pois o pronome oblíquo jamais deve... Bem, não importa agora! - Disse, dando-se conta de sua chatice. - Olha, vou esperar uns dias. Pode ser que ele não estivesse contaminado com nada.

- Dizem que esse bicho tá passando até câncer e sífilis... 

- Avisar-te-ei de qualquer percalço, Dona Olga. 

O dia seguiu sem maiores problemas e nenhum sintoma apareceu. Tive sorte, pensou Octávio, sem saber o que estava por vir. 
Foi na manhã seguinte, na padaria, que aconteceu. Quando chegou a vez de Octávio Gramanazi fazer o pedido ao balconista, ele enunciou: 

- Quero sete pões... 

Chegou a tremer-se de pavor. "PÕES"?! Desde quando falava isso?! Tentou novamente:

- Quero sete põ... põ... PÕES! - Gritou. 

A balconista, acostumada com o impressionante léxico do cliente, riu de nervosa. 

- Não ria! Eu não sabo o que... SABO? Eu não... não.... sabo! - Definitivamente, Octávio não conseguia falar corretamente.

Saiu na rua desesperado e, na esquina de casa, encontrou um velho amigo.

- Olá, Octávio! Quanto tempo! O que tens feito? Alguma novidade?

- Olha, Rodrigo, fura picado por mosquito listandito... Quer dizer, eu não sabo muito o que...

- Está tudo bem, Octávio?

- Bein, beins... Drogue! Eu naum façu a nemor ideia do que... A questã é berturbatora e mim sinto perplecto! 

 Saiu correndo, trancou-se no apartamento e dizem que todos ouviam seus gritos de desespero. Tentava falar muitas palavras. Gritava na janela:

- Tauba! Rezistro! Adevocado! Largarto! Cardasso! Amarrom! Iorgurte! Mortandela! Mindingo! IMBIGO! 

Pobre homem. Nunca descobriu-se a cura de sua doença. Nenhum outro caso foi registrado no mundo.

Octávio não podia mais dar aula, foi morar na rua. Pedia "insmola", "trucadinho", "monhedas".  Eu nunca mais o tinha visto, até semana passada. Vi Octávio na televisão, cercado de admiradores, lançava um livro: Manual Agramatical. Tinha entendido, finalmente, o valor de falar a língua do povo, a língua do mundo, que não podia ser aprisionada em tabelas, nem representada por regras. Estava feliz, muito feliz.










sábado, 27 de fevereiro de 2016

Reforma Infernal

       Foi Lúcifer quem primeiro falou, diante do silêncio ensurdecedor.

- Esperava que alguém fosse tomar a iniciativa, mas perece que estava enganado...

- Olha, meu anjo, normalmente é o mais velho quem começa o falatório. Eu sempre fico esperando Anúbis falar, mas essa cadela fica fazendo a egípcia, faz de conta de que nunca é com ela! - Disse Hades, louco por um barraco. 

- Ai, miga, sua louca, você adora uma confusão, né?! - Riu, no fundo da mesa, Plutão.

- Que mania de roubar minhas gírias! Credo! Meu Diabo do Inferno, te liga, planetinha! Nem planeta mais tu é! Deveria ficar quieto em todas as reuniões e ser grato a mim para toda a eternidade, porque, se não fosse pela minha existência, os Romanos nem teriam criado você ao roubar a religião politeísta dos Greg..

- Chega! Gente, vocês são chatos. Que inferno! - Gritou Kali, entrando no salão e fechando a porta com um de seus quatro braços.

- É o inferno mesmo, "monamu"! Só a hindu frenética dos incensos que não se localizou...

- Hades, por favor, cala a boca. - Pediu Exu, que só observava com olhar de desprezo.


      Já era a terceira reunião naquele ano. Ninguém mais suportava. Estavam no salão principal do Submundo. Quando a coisa ficava feia, mas bem feia mesmo, num nível, digamos, infernal, os deuses da reuniam-se. Estavam todos lá, centenas, um de cada religião: Lúcifer, do Cristianismo; Anúbis, dos Egípcios; Kali, do Hinduísmo; Exu, das religiões da fascinante África; Hades, dos Gregos; Plutão, dos Romanos pré-cristãos; e muitos outros. Apesar da enorme quantidade de divindades, eram esses deuses que mais tomavam a palavra e as decisões. Perséfone, mulher de Hades, chegou por último e sentou longe do marido que, por sua vez, insistiu:

- Amorzinho, senta aqui com teu diabão...

- Cala a boca, Hades. - Respondeu ela, ríspida.

- É, grego, fica quieto. Todo mundo sabe que tu prefere o Hérc...

- E vamos dar início a reunião! - Interrompeu Kali.

- Bem, estamos aqui hoje porque a situação está caótica. O inferno nunca esteve tão infernal! Pior do que isso, só a Terra. Bem, estamos com pouco espaço e tem muita gente vindo aí!

- Mais gente?! Que horror! - Gritou algum deus que comia todos os salgadinhos da mesa.

- É, mais gente! Tem neonazis, bolsominions, uma galera! Estão vindo e ficarão pra sempre. Chego a pensar em adotarmos os sistema de reencarnação...

- Ah, não! Eu não mando Hitler de novo pra Terra, que homenzinho mais sem classe! - Proferiu Plutão.

- Temos que fazer reformas! Estamos com a mesma estrutura que Dante Alighieri criou, não dá mais. Chega! As pessoas já chegam aqui sabendo as torturas que vão receber. Alguém tem alguma ideia? - Lúcifer, assim, passou a palavra para os outros.

- Que milagre! Falou pouco hoje, Satã, Capetinha, Diabinho, Serpentinha...

- Hades, se não vai ajudar, não atrapalha. - Pediu Exu.

- Tá, parei, mas tenho ideias! Pensei em castigos novos! Podemos colocar um ônibus lotado, mas muito lotado, daqueles articulados, sabem? Podemos colocar a passagem a 3,75 e fazer um feitiço, de modo que, quando a pessoa chegue no final do ônibus, depois de ser espremida o caminho todo, ela simplesmente volta ao início! PARA SEMPRE!

- Boa, boa! - Disseram todos e todas.

- Também pensei em trazer aquela cantora, a Cláudia Leite, sabem? Colocar ela cantando aqui, pra sempre também. É só dar umas chocolates que ela...

- Ah, não! Eu não quero aquela menina aqui! Tudo tem limite! - Disse o deus que, após comer os salgadinhos, atacava os brigadeiros.

- Você não tem que opinar, tua religião sequer existe e...

- Olha quem falando! O filho de Cronos menos poderoso que...

- Gente, vamos tentar...

- Tentar o cacete, seu bosta! Eu agora vou falar tudo o que eu...

     Em questão de segundos, todos os deuses estavam brigando. A discussão durou alguns séculos e, após a reunião, nada ficou resolvido. O inferno continuava infernal, até parecia a Terra.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Aedesempregado

Ele entrou cabisbaixo. Vestia a mesma roupa listrada de sempre.

-Tudo bem?
- Mais ou menos. O emprego tá foda, sabe?
- Pouco movimento?
- É, as pessoas meio que já tão cansadas, sabe? E tem a crise, sabe?
- As pessoas estão atentas?
- Muito!
- E o que eu posso fazer por você?
- Então, com o movimento caído desse jeito e com a criançada lá em casa, sabe?
- Aedes, eu já entendi: você quer outro emprego!
- Isso!
- Mas você é um ícone! É o famoso Aedes Aegypti! Você tocou o terror por anos e...
- Chega de viver de passado! Quero voltar aos tempos gloriosos! Queria transmitir raiva, câncer...
- Impossível! Impossível!
- Ah, vê o que você pode fazer por mim, por favor!
- Tá, vou ver o que tem aqui.
- Obrigado, porque é muito ruim, sabe?
- Achei! Tem aqui, olha! Febre Chikungunya e um produto novo no mercado, tá valendo?
- Qual o nome?
- Zika Vírus! O Governo que fez! Erro de laboratório e o caramba!
- Ah, que nome mais idiota!
- Mas tem comissão! Você passa a carregar as três doenças e, para cada 30 picadas, você transmite uma microcefalia!
- Boa! Começo quando?
- Agora!
- Fechado!
- Fechado!

E saiu voando, pronto para tocar o terror novamente. Em meio à crise, Aedes agora tinha três empregos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Por antecipação


Segurando a mochila da moça que estava em pé ao seu lado no ônibus, Jussara conversava animada com a melhor amiga do dia, Tânia. Havia conhecido Tânia ao passar pela roleta, mas já a considerava uma grande amiga. 

- Canseira, mulher! Credo. Esse ônibus sempre lotado, sempre! Se não fosse o aniversário da minha filha, eu não saía de casa, não...

- Aniversário da mais velha?

- Não. Da pequena.

- Quantos anos?

- Treze.

- Ah, então já não quer mais brinquedo. Já tá grandinha.

- Pior. A guria quer um celular. Comprei, né? Vou fazer o quê? É o futuro...

- Comprou um desses modernos?

- Ah, todos são modernos pra mim. Tal o tal de Detroid...

- Android.

- Isso!

- Ela vai adorar os aplicativos. Tem muitos!

- Tenho medo...

- Tem que ter mesmo. Tem muito tarado por aí.

- Credo, amiga! Não fala isso!

- É sério, Jacira!

- Jussara.

- Isso! E vai ter um monte de maloqueiros dando em cima dela. Te liga!

- Ai, já fico nervosa! Para! 

- Depois tua guria se envolve com um traficante aí, engravida e já viu, né?

- Deus me livre!

- E o pior: capaz de ela ficar viciada que nem o marido! Ele vai bater nela, certamente! Ela vai acabar se prostituindo pra sustentar a criança, que pode nascer com sequela. Olha, se não nascer com sequela, vai seguir os passos do pai bandido: estuprar, matar, assaltar e o caramba! Vai acabar na cadeia o coitadinho. 

Jussara desceu na parada seguinte, chorando. Mal pode despedir-se da amiga que a alertou dos perigos do mundo. Assim que chegou em casa, Jussara tomou toda a cartela de comprimidos que a gaveta guardava. Deu fim à vida, pois já não suportava o peso de ter um neto na cadeia.